domingo, 22 de maio de 2011

A DOIDA

Bem, sei que muitos já devem conhecer esse belíssimo conto de Drummond... Conheci-o há um tempo - indicado por amigo -  para uma possível montagem que eu faria dentro de uma disciplina na Universidade. Como a proposta para a montagem tomou outros rumos de estrada, acabamos não montando, mas a admiração pela poética forte da narrativa me encanta.
É Bela e cativante a maneira com que autor descreve uma singela passagem na vida de dois seres tão distintos e próximos por uma única razão: A HUMANIDADE PRESENTE EM CADA VIVENTE!
Hoje acordei e quando liguei o computador, divagando sobre minhas inúmeras pastas onde se encontra de "TuduQuantuá", reli o texto e o trago para o blog. Quem já o conhece, deleite-se novamente, quem ainda não o viu:



A DOIDA

Carlos Drummond Andrade

        Havia pelo menos duas versões sobre como uma jovem mulher comum tornara-se doida. Uma a de que casada em grande estilo com um rico fazendeiro, este mesmo que a rejeitou ainda na noite de núpcias. No alto da discussão empurrou-a escada abaixo, fazendo-lhe quebrar os ossos. Uma segunda versão fora a de que o pai, rico e sem traços de que morreria em breve, achou o seu café com um amargo diferente, e como havia várias estórias de envenenamento...
        Há vinte anos existindo dessa forma cria-se fama de maluca; aos quarenta não mais se pode negá-la. E o que é pior, entender a loucura como uma falta da própria louca. Crueldade que apagava qualquer remoço de gerações seguidas de jovens, que passavam na frente de sua casa, atiravam-lhe pedra nas janelas, tudo para verem a reação da doida, seus gritos e gestos.
        Três moços, que passavam pela sua casa ao irem em direção ao córrego banharem-se, resolveram jogar calhaus de ferro, em intervalos seguidos, para terem o prazer da reação da doida.
        O mais velho, que se tomou como chefe, teve um desejo ambicioso, a chaminé. Ouviu-se o estrondo da quebra de uma telha, um passarinho fugiu assustado. Porém, nada da doida. O segundo jogou  à altura da janela, batendo em uma lata, um som seco reverberou pela casa, mas ainda nada do que se buscava. Talvez não houvesse mais qualquer coisa para quebrar, na casa quase abandonada.
        O terceiro do grupo, com seus onze anos, resolveu, em um ato de coragem adentrar-se ao jardim da casa. Os outros dois amigos entediados pela falta de eco, deixaram-lhe sozinho, e foram ao campo.
        Empurrou o portão – então não estaria fechado? Pisando sobre o jardim excitado e cauteloso. Viu uma lagartixa, e teve vontade de primeiro mata-la, e depois investir contra a janela. A lagartixa conseguiu fugir, mas levou o jovem a uma cancelinha , que um dia fora azul, e que cheia de folhagem não se via da rua. A pequena porteira estava podre, o chão da varanda, antes pintado de rosa e azul, em buracos.
        O garoto entrou na casa, não discernia bem os móveis, ou o assoalho velho, e percebendo-se com a pedra na mão, viu que não haveria qualquer razão em mantê-la, e jogou-a no chão.
        No cômodo que antes vira da janela, obscurecido, vira agora muitos móveis, alguns quase em cima de outros, vidros e espelhos, uma mesinha, e cadeiras. Encostado à mesa um piano. Um guarda-roupa , um baú e mais alguns pacotes. Era como se a casa tivesse fugido da dor do mundo hostil lá de fora e encontrado paz em um recanto em si mesma.
        Atrás do piano estava a cama. A doida sentada projetava o rosto para a frente, para entender o barulho incomum. Levantou as mãos à altura dos olhos, de forma a protegê-la de uma eventual pedra. O jovem a encarava, ela uma velha pequenina, protegendo-se atrás de uma barricada de móveis. A velha mexeu os braços, com os pequenos olhos amarelados, a fitar o estranho, e parecia ter medo.
        O jovem sorriu, não sabia o que fazer.
        A doida esboçou um som com a boca trêmula, não se entendia, mas pareceu-lhe um pedido, e não como supôs à primeira vista um xingamento, sim, com certeza era um apelo. Ao ver a água, mesmo sem entender a voz fina, encheu um copo pela metade. A doida teve que ser ajudada e beber, não tinha mais forças.
        Uma mudança na percepção do menino, não havia mais uma doida, e sim uma senhora velha com sede, e que talvez estivesse morrendo.
        Deitou-a na cama em posição suave, com um pouco de repugnância. Ela produzia o mesmo som, mesmo depois da água, talvez um remédio...? Passou a sua frente frasco por frasco, mas não recebera qualquer sinal. Tinha medo de sair e chamar um farmacêutico, ou médico, que morava longe, e deixar a velha senhora morrer sozinha, sendo ainda alvo de pedradas...
        Tropeçando nos móveis, afastou o armário que encobria a janela, abriu a cortina, e a luz adentrou-se no depósito onde a mulher morria. Decidiu, não deixaria a mulher sozinha, e soube imediatamente que não poderia fazer mais nada, a não ser sentar-se à beira da cama, e esperar o que ia acontecer.


BOA NOITE E UMA EXCELENTE SEMANA!





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