Sim, todos nós acordamos sobrecarregados de
amanhãs.
Penso até que essa é a principal adjetivação do sujeito
contemporâneo.
É claro que alguns conseguem de maneira um tanto
admirável controlar as dosagens e seguir com cautela a sua bula pessoal de
procrastinações. Mas a verdade é que a palavra procrastinação tomou uma
dispendiosa roupagem pejorativa, de um valor imensamente negativo para um mundo
tão ágil, que nesses dias e espaços onde vivemos a expressão “deixar para
depois” vestiu-se do mesmo tecido mórbido da titulação “imprudente,
irresponsável”, ou talvez ainda mais sujo.
Sem espanto, por menos que isso nosso presente constitui-se
de enfermidades psíquicas e somáticas, de desesperos da alma e aflições da
existência, um crítico indicador do que temos conquistado daquilo que nos
ensinaram a traçar como meta, sonho e realização. Simplesmente esperar, nem que
seja três minutos para cozimento de um macarrão instantâneo, soa-nos assim como
assinar um atestado vitalício de fracasso e desilusão de si, para si, para os
outros. Sendo assim sejamos eternamente ansiosos e desesperados, na corrida
desenfreada pelo alcance do... da... pelo alcance de qualquer coisa que seja
pra já. Pra não encher linguiça apimentada, quero desabafar estar cansado dessa
constante de sermos adestrados a construir amanhãs perfeitos, caramba, nosso
prospecto de futuro anda assassinando a única concretude da vida: o presente,
não é? Ou não? Nem sei...
Aliás, saudemos a psicanálise, somente ela no hall
das ciências modernas é capaz de tangenciar ao mesmo tempo o crível, o incrível
e o quociente de ambos num mesmo arcabouço de esperanças, foi a escolhida pelos
sobrecarregados de amanhãs e continuará reinando entre as outras alternativas
“alternativas” de obtenção da calmaria e paz de aproveitamento do agora. Ou
pelo menos da consciência prévia de que só o agora existe. Tenho uma ligeira impressão
(talvez até mesmo ingênua) de que tal panorama de desastres interpessoais
contrasta profundamente com certa qualidade de vida experimentada por gerações
passadas que basicamente praticavam o ato de procrastinar.
Vejamos: por não acordar com os olhos lacrimejados
de porvir, nossos avós casaram-se aos 17 anos e com nenhum sinal de desespero
consolidaram as famílias que se valem ainda de exemplos para algumas condutas
filosóficas, sócias e religiosas, mais do que isso se tornaram para boa parte
da sociedade romântica os verdadeiros heróis acessíveis. Foi procrastinando que
pintamos nas cavernas os primeiros indícios de humanidade. Por não se doar tanto aos amanhãs, a Dercy Gonçalves
viu passando 10 décadas vestidas de púrpura e ainda morreu falando de sexo. Foi
procrastinando que os egípcios inventaram a anestesia e o PT chegou à
presidência (?). Deixando pra depois aprendemos a masturbação e o perdão. Descarregados
de porvires, é que vivemos os momentos mais intensos e interessantes de nossas
vidas.
Quer saber, vou traçar a minha singela lista do que
é possível ser feito logo que descarregado de amanhãs e imbuído de agoras:
1.
Experimentar
alcachofras, não esperar até conhecer a Tunísia.
2.
Filmar
aquele curta-metragem caseiro cujo roteiro se encontra em alguma das minhas
pastas.
3.
Gastar todo o meu dinheiro numa viagem até
Santiago/Chile, me viro depois.
4.
Convidar
três amigos, quatro familiares e meu companheiro para um acampamento na Serra
do Cipó, e de fato ir.
5.
Terminar
meu bendito livro de dramaturgias minhas.
6.
Começar
o Pilates (oh céus, o Pilates).
7.
Separar
um dia inteiro para aprender a fazer o arroz soltinho.
8.
Decorar
a parede da sala.
Bem, foi o que me veio à mente até agora.
Provavelmente me acometeriam outras tantas urgências, mas é claro, na mais
sincera hipocrisia de poeta, confesso: O relógio do computador já anuncia duas
da madrugada de uma monstruosa segunda-feira e preciso dormir para acordar as
sete, sobrecarregado de amanhãs.
Tchau, odeio texto de autoajuda.
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